Os Países Baixos comemoram hoje o seu dia nacional.
Habitualmente este deveria, por tradição, corresponder ao aniversário da raínha. Acontece que este país tem sempre uma maneira sui generis de fazer as coisas. Quando a actual raínha, Beatrix, subiu ao trono, por voluntária abdicação de sua mãe, de imediato anunciou que o dia nacional neerlandês, o “dia da raínha”, continuaria a ser o dia do aniversário da até então raínha Juliana, 30 de Abril. Para além da homenagem simbólica àquela que foi a raínha mais amada por todo o povo dos Países Baixos, que preferia que a tratassem por “minha senhora” (tratamento aliás tornado oficial e protocolar para além do tradicional “majestade”, de que ela não gostava), houve também quem visse nesta decisão uma razão de carácter prático (algo também muito neerlandês), mesmo que secundária, já que o “dia da raínha” é sempre festejado por todo o povo na rua, fazendo música, passeando, divertindo-se, vendendo livremente objectos pessoais em todas as povoações e cidades, independentemente do estatuto social ou poderio económico de quem o faz, convivendo em alegria, o que seria difícil de organizar no dia de aniversário da raínha Beatrix, no mesmo de Janeiro, devido ao frio e, muitas vezes, à neve.
Este ano será pela primeira vez sentida a ausência daquela a quem os neerlandeses carinhosamente chamavam de “moeder des vaterlands” (mãe da pátria), a raínha Juliana. Só uma pessoa, séculos atrás, tivera direito a uma tão grande, espontânea e significativa qualificação popular: Willem van Orange, “vader des vaterlands” (pai da pátria).
Para falar deste peculiar país escolhi um dos assuntos que há cerca de um ano foi noticiado nos media neerlandeses (uso este em vez do mais habitual holandeses, pelo simples facto de ser o correcto, já que a Holanda não mais é do que uma das várias províncias que formam os Países Baixos, Nederland em neerlandês) foi o da vontade do principal partido que forma a actual coligação governamental, o cristão-democrata do primeiro-ministro Balkenende (os outros companheiros de governo são o partido (liberal-)conservador, o vvd, e um interessante partido que se poderia classificar de social-liberal humanista, o d66) de tentar reavivar e reforçar a prática de “valores” na sociedade neerlandesa.
Ora, a importância do conceito de valores é aquilo que sempre caracterizo como a parte essencial da maneira neerlandesa de ser. Em neerlandês diz-se “waarden”. É um viver de acordo com os valores profundos do ser humano, não um simples vegetar à superfície.
No pensamento de Balkenende estes valores têm, porém, uma tintagem claramente religiosa. Ao contrário do que muitos pensam, os Países-Baixos são um país substancialmente religioso, o que nem sempre significa confessional. Religioso à maneira neerlandesa, onde a tolerância e a liberdade individual assumem grande importância, pelo que não é de estranhar que também se tenha então falado da eventual reintrodução de uma oração na abertura solene anual do parlamento pela raínha. Tal porém não foi aceite, pois os conservadores nos Países Baixos, como partido político, são tudo menos religiosos, o que os distingue e muitas vezes opõe, aos cristão-democratas. Exemplo disso são as posições diametralmente opostas na questão do aborto, da eutanásia, da igualdade de direitos independentemente da orentação sexual. Para os conservadores, como para todos os demais partidos com excepção dos cristão-democratas e dos minúsculos partidos da direita religiosa, “waarden” são os valores profundos do ser humano como tal, em todas as dimensões que o termo em si abarca.
Hoje, 30 de Abril de 2004, mais do que nunca, é bom recordar o que de mais distintivo tem aquele pequeno enorme país: a vivência dos seus valores profundamente humanos. Excelente exemplo de um dos ainda quinze países desse país maior, em construção, que se chama Europa.
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