"NO DESENHO DAS PALAVRAS, o (re)encontro das margens …"
"A exposição que agora se apresenta ao público de Portugal encerra um significado artístico e cultural que ultrapassa o normal sentido de uma exposição de pintura. Ela é o resultado da convergência de diversos factores decorrentes dos profundos e contínuos laços que ligam o sul de Portugal ao Reino de Marrocos e muito especialmente à região de Marrakech e Aghmat. Ela é, assim, o fruto de um encontro muito especial e porventura inesperado de múltiplos talentos:
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o talento de personagens que desde há séculos deixaram memórias, obras e emoções que ainda influenciam este recanto ocidental do espaço mediterrânico ;
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o talento de intelectuais contemporâneos que souberam fazer convergir numa apresentação coerente expressões artísticas tão díspares como a pintura, a gravura e a literatura;
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e sobretudo o talento artístico de um artista plástico que ocupa um lugar cimeiro entre a actual geração de criadores do Reino de Marrocos.
Podemos dizer que o presente trabalho de Moulay Youssef Elkahfaï começou a ser pensado e preparado há vários anos e se iniciou com o (re)estudo da vida e da obra de Al Mouatamid Ibn Abbad e com uma aproximação muito consistente aos locais da sua vivência, à compreensão das suas contradições e dos seus exaltados sentimentos, na busca dos sentidos mais profundos da sua existência. Foram largos os meses e anos em que podemos partilhar essa busca, ora intimista, ora debatida e discutida, mas quase sempre obsessiva na vontade de nos aproximarmos de um personagem ímpar do nosso imaginário comum.
Mas esta exposição explode sobretudo no momento em que o traço e o gesto largos, fortes e eloquentes do Artista trazem para o nosso convívio pessoas, momentos de êxtase e de desânimo, momentos de raiva e de ternura que são a própria essência da vida do Rei/ Poeta. Aqui, passamos a ouvir as palavras sedutoras de Ibn Ammâr, sentimos a presença discreta mas influente de I’timâd, observamos o profundo desânimo pelo poder perdido e sofremos com a inexorável partida dos amores desaparecidos. Também não deixa de estar presente a natureza física que envolveu o exílio em Aghmat e a recriação do enquadramento de espaços e de objectos simbólicos de um homem que sucumbiu ao poder – a(s) cadeira(s), os jarros da água, os vasos do vinho, as almofadas … É igualmente notável o modo como Moulay Youssef Elkahfaï, não obstante ter optado por técnicas e formatos tão diferenciados, nunca se afastou desse percurso em que nos quer conduzir.
A palavra, as palavras, não podiam deixar de acompanhar este percurso e também aqui Moulay Youssef Elkahfaï soube trazer para este encontro de talentos o intelectual certo que vem sublinhar o sentido de algumas cores, a memória de algumas emoções e a importância do rigor destes desenhos.
Tanto nas fortes e arrojadas expressões artísticas de Moulay Youssef Elkahfaï como nos textos de Abderrahmane El Bahiaoui somos a cada momento confrontados com a trilogia que foi inerente ao percurso de vida de Al Mouatamid Ibn Abbad. Esse confronto tanto nos é proposto de modo frontal e evidente, como é apenas sugerido em sombras discretas, ou em expressões subtis. Mas eles lá estão sempre, sem nunca ser explícito qual a predominância de Ibn Ammâr ou de I’timâd no espírito turbulento e enamorado deste Poeta e Rei que, ao ser exilado em Aghmat, tanto perdeu o poder de que se inebriava como se afastou das palavras doces que pronunciava nas margens do rio Arade…
Nesta exposição que em boa hora visita Silves estamos num momento alto de celebração do encontro entre o desenho certo, belo e exaltado e as palavras que perduram.
Estamos também certamente neste território tão importante para a nossa identidade que é o das continuidades, porventura subtis mas carnais, entre as duas margens deste mar tão pequeno…"
JOSÉ ALBERTO ALEGRIA
[Este texto relaciona-se directamente com a exposição intitulada No Desenho das Palavras: Moulay Youssef Elkahfaï encontra Al Moutamid Ibn Abbad, patente ao público na Casa da Cultura Islâmica e Mediterrânica de Silves]
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