Diante de mim tenho um livro. Chama-se “Cette aveuglante absence de lumière ». Está fechado. Religiosamente fechado. Comprei-o há pouco mais de uma hora. Depois de jantar com dois amigos do site, dirigi-me a uma livraria para saber se tinham encontrado o livro que horas antes pedira. Não, não tinham encontrado. Pela enésima vez deixei-me vaguear entre os livros. Hoje em dia já o faço poucas vezes. Anos e anos de leitura, por profissão e vício, assim como alguns como livreiro, resultaram numa tal enormidade dos mesmos em casa que só casualmente algo me desperta curiosidade adicionalmente compradora.
De repente, vejo a figura de Tahar Ben Jelloun num deles. A sensação que tenho sempre que sou confrontado com o seu nome ou o seu rosto passa-se em dois tempos. O primeiro é, sem dúvida de desagrado. Nunca me esqueço o que dele me disse o meu amigo Agustin Gomez-Arcos. É triste como uma pessoa possa vender as suas ideias, os seus ideais. Vender o seu nome. O segundo andamento é de curiosidade e de benefício da dúvida. Pois se até o Mahi, Amigo verdadeiro, irmão de alma, pois se até Mahi o tem agora como amigo, algo haverá em Tahar que o justifique, muito para além do seu renome de autor mundial, para além do Goncourt e de tantos outros prémios. Passados esses dois andamentos, reparei neste segundo livro. O título nada me disse. Com o cuidado habitual de quem respeita os livros e os outros, procurei a dedicatória do livro. Confesso que tive esperança de ele ser dedicado ao Mahi.
Quando a li, parei. Paralisei. Depois as imagens sucederam-se à velocidade neurónica. Sim. Lá estava escrito o nome de Aziz. E de seu filho Réda. Na frase anterior a palavra Tazmamart. Há turbilhões que é impossível descrever. Para tal era preciso ser-se Faulkner. Era necessário deixarmos a “stream of consciousness” escrever por nós. Tal a profusão de imagens que se seguiram. De locais tão diversos. De Porto Covo à Noruega. De Faro a El Jadida. De Paris a Tazmamart. Passando por Albufeira e pela rue Yougoslavie em Marrakech.
Mas que tem isto a ver com esta foto, perguntareis? Não sei. Pois é, não sei. Porque não sei ainda a foto que vou pôr nesta crónica. Então não é a crónica destinada a acrescentar algo a uma foto? Como então não saber qual a foto ? Sobre que estás então a escrever? Sobre a foto que vou pôr. Mas, dizes que não sabes qual? Como é possível? Estás a mangar connosco, ou quê? Não, não estou. Estou até a falar de algo muito sério. De algo muito importante. Estou a falar de uma foto. Lá estás tu outras vez com essa da foto! Então desembucha homem, diz lá qual é a foto! Pois, o problema é esse. É que a foto é muitas. E só posso pôr uma. É a foto plural de uma vida. É a foto plural de uma pessoa. É a foto plural de uma família. É a foto plural de amigos da liberdade. É a foto plural de sofrimento e alegria. É a foto plural de umas mãos que durante dois dias quase não deixaram as minhas. É a foto plural de uma mãe que, na véspera de morrer, me sussurra “Merci, merci beaucoup Antonio”. A voz da mãe de Abellaziz Bine Bine. Aquele que me diz adeus em quadro no meu quarto. Por detrás de um muro . Aquele que anos a fio foi uma das obsessões da minha vida.
Queria tanto ajudar aquela mãe a saber novas de seu filho. Na voz da sua viola ou nas cordas do seu pincel, Mahi , seu irmão, meu irmão, sofria e vivia-o. “Parece-me reconhecer o estilo de meu irmão” escrevera numa página que me enviara de um relatório da AI francesa. Sinal de vida a que nos agarrávamos. Durante anos. Durante anos e anos e anos. Quase vinte. Aquela mãe ansiava por ver o filho que não sabia se era vivo ou morto. Como escreveu Agustin em no “L’Aveuglon.”: O drama de uma mãe que nem sequer pode chorar a morte de um filho por não saber se ele morreu ou não.
Até que um dia o telefone toca. Era a voz da tristeza de Mahi. A mãe estava muito doente. Passados minutos, revoltado, telefono-lhe e digo-lhe que não podia ser. Aquela mãe não podia morrer sem saber da sorte do seu filho. Nos últimos anos as minhas diligências tinham parado por ordem de madame El Mahi. Não me restava outro caminho senão o da divulgação na ONU do nome dele. Que não, não autorizava, dissera ela ao filho seu homónimo. Diz ao António que o proíbo de tentar fazer mais qualquer coisa. Já perdi um filho, não quero perder mais. E assim então fiz. Porém agora era diferente. Lá bem no fundo, ela não poderia mais desejar desta vida do que vê-lo, se vivo, enquanto em vida. E a minha revolta expande-se para o outro lado da linha em território magrebino. Horas depois a decisão da família dá-me luz verde. Forma-se uma teia inacreditavelmente envolvente que obriga os carrascos a pela primeira vez cederem.
Semanas depois oiço no meio de gritos de alegria a voz de Mahi dizer-me: “ Aziz chegou a casa. Ninguém os consegue separar” . E a alegria humedece a minha alma.
Como foi possível? Quem foi? Quem conseguiu? Por certo muita gente. Desesperado um dia , por carta, assegurei que não queria saber nem o quê , nem como, nem se. A única coisa que implorava é que convencesse quem sobre isso tinha poder a fazer com que aquela mãe, mãe como ela, pudesse estreitar nos seus braços o seu filho. Aziz. A quem é dedicado este livro que, fechado, me olha.
A foto? Que importa a foto. Será uma qualquer. Uma da múltipla. Uma que no momento exacto impeça as outras de o serem. Mas será sem dúvida a foto desta crónica. E não outra.
22 de Setembro de 2001
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